13 de setembro de 2008

OBJECTOR DE CONSCIÊNCIA

Já me havia cruzado com várias objecções de consciência nestes dois anos de medicina. Doentes que se recusaram a ser picados por estarem fartos, outros que se recusaram a fazer transfusões sanguíneas por convicção religiosa só para referir as situações mais frequentes.

E então dou por mim, a falar uns bons três quartos de hora com um doente para perceber aquilo que na minha cabeça não fazia sentido.... Este recusava-se a ser tratado com medicamentos administrados por penso cutâneo.

Estranho e insólito... Tão insólito que ainda pensei que o doente me estivesse a tentar dizer que era alérgico ao medicamento em questão ou ao próprio penso... Mas não, era muito mais simples e humano que isso... Os pensos faziam-lhe mesmo confusão na cabeça! Tê-los no corpo não era coisa para aquela alma.

E sai da sala com um sorriso de orelha a orelha...
Por ter percebido este pequeno detalhe tão importante para aquela pessoa.
Porque não há mesmo necessidade de sobrecarregar aquele doente com desconforto gratuito.
Por ter aprendido que as vezes, para confortar, importa mais escutar um pouco do que fazer muito.

BANHA DA COBRA

Tantas vezes olho para os meus predecessores, feiticeiros e bruxos medievais, xamãs indios, curandeiros africanos e outros tantos que tais, com um tom prepotente de bata candida, resplandecendo ciência e conhecimento.

E então, certo dia- naquele dia- tenho dois doentes na enfermaria- daqueles que hospedam em si tumores altamente malignos e avançados- internados por problemas secundários com solução óbvia. Situação habitual, não fosse um diabo de outra qualquer doença lembrar-se naquele dia de reclamar-lhes a alma diante dos meus olhos.

A um peço uma TAC, ao outro um electrocardiograma e umas análises.... Resultados óbvios: um AVC para um, um enfarte para o outro. E eu deslumbrado com a facilidade com que máquinas e tecnologias me abrem os olhos!

E toca de pensar em tratá-los...
Toca de curá-los que o lugar deles é em casa, com família e amigos.
E vai dai, rever o processo de cada um deles...
Desgraça!
Nenhum pode ser tratado: a doença, a quimioterapia e (quem sabe) a velhice roeram-lhes os corpos.

Se os tratasse, qualquer um deles morreria da cura...
Se não os tratasse, esperar que aqueles diabos não os levassem...

E naquela noite, pequenino e frágil, rebolei na cama sabendo que, fiel a um limitado Primum Non Noscere que um dia jurara, estava a tentar domesticar leopardos com pratinhos de leite;

Ainda que seja possivel chegar à percepçaõ do ínfimo detalhe daquilo que corre diante dos nossos olhos, permanecerá sempre uma ínfima centelha de Vida e Verdade que, orgulhosa e irreverente, nos escapará das mãos! Serei mesmo, por detrás de tanta ciência, muito mais do que aqueles que me precederam? Serei alguma vez menos do que aqueles que um dia me sucederão... Quantos xamãs, curandeiros e bruxos terão chorado os seus próprios limites neste mesmo compromisso de um dia serem rebeldes com uma causa?

7 de setembro de 2008

PÉROLAS

É gira a quantidade de propostas a que o trabalho me expõe.
Umas mais lícitas outras menos lícitas...

Repugnam-me particularmente aquelas lamúrias pegajosas e viciadas de quem acredita que receberá mais se der o que não deve para exigir o que não pode. A famosa cunha que se imiscui ao meu saudável prazer de me dar eu próprio com independência às necessidades daqueles que me procuram. Sou eu que me dou! Ninguem me tira aquilo que não quero dar...
Como se se esquecessem que são meus patrões, que nos seus impostos me pagam o que me devem, tão só o meu justo sustento.

Mas no meio de tanta coisa que me incomoda, às vezes- como um recolector de pérolas que vasculha ostra atrás de ostra um oceano de cascas- caem-me nas mãos pequenos tesouros que, por serem gratuitos e desinteressados, me enchem de alegria e felicidade. Gorjetas que o meu ordenado não tem como me pagar e os favores não tem forma de me dar.

Curiosamente, surgem todas quando os doentes me viram as costas, naquele momento mágico da alta, em que recuperam a independência e a gratuicidade de que necessitam para me julgar como Homem.

O doente que entrando a medo e conflituoso no serviço- aquele que me comprimentou com um ríspido "Onde é que assino os papeis para me ir já embora?"- uns dias depois, nos diz em surdina a todos que tem uma casa no Brasil e que estamos todos convidados para lá passar uns dias.

Um certo filho de uma doente, hipocondriaco do mais alto grau, que todos os dias me chagava o juizo com as mesmas perguntas ácerca do estado de saúde da mãe... Aquele que no dia em que viu a mãe ir para casa me perguntava, liberto dos seus medos, de sorriso franco montado e com um aperto de mão caloroso e agradecido, se fazia consulta no sector privado.

Os dois estenderes de mão agradecidos daquela noite de urgência: o do filho que, por causa dos meus floreados técnicos, passou doze horas a fazer-me companhia nas urgências centrais vigiando a sua mãe entre um "desculpe" e um "tem mesmo de ser" que eu volta e meia lhe lançava desconfortavel e o do marido da senhora que em dois minutos foi admitida nos cuidados intensivos com o diagnóstico de enfarte. Tão dispares nas circunstâncias, tão próximos no momento e na intensidade do seu toque.

A todos vocês o meu obrigado...
No silêncio, recuso todas essas ofertas
Mas na minha omissão, saibam que do fundo do coração já tive a minha paga:

As verdadeiras pérolas não se procuram;
Encontram-se!

Os verdadeiros tesouros não se reclamam
São-nos dados!