17 de abril de 2007

CANCRO

Silenciosa a morte foi-lhe crescendo no corpo... Timida e discreta, num ponto lugubre e distante primeiro, para logo, como um polvo, estender veloz os seus tentáculos por todo o seu ser.

Quando, às primeiras queixas, temerosos o bombardeamos com TACs e outras siglas mágicas da nossa feitiçaria técnica que tudo podem, enchemo-nos de esperança... Acreditámos que eramos deuses do Olimpo, telefonámos a correr para o bloco, a dizer que amanhã salvavamos o homem, que esse seria o dia...

E assim foi, num ritual místico, desinfectamo-nos , vestimos roupa estéril e lançamo-nos à obra. Já no bloco operatório, o tumor, malévolo, cuspiu-nos na cara com um sorriso sarcástico o seu grito poderoso " podes fechar, não há nada que possas fazer aqui, já te venci...". No seu percurso silêncioso passara despercebido diante dos nossos olhos, espalhara todo o seu veneno por centenas de pequenos feijões que iludiram o nosso arsenal de tecnologia.

Intriga-me muito a forma como todo este processo se opera... Se as coisas más, sendo preversas, são tão eficazes no seu caminhar porque duvidar que as coisas boas também o sejam? Porque nos causa tanto atrito reconhecer vida nos nove meses de caminho sereno de uma gravidez?

Porque nos consumimos na aridez dos nossos cansaços? Porque regateamos os nossos recursos com medo que nos faltem? Porque somos orgulhosos diante das mãos que se estendem ante as nossas fragilidades? Porque tantas vezes o fazemos até que já seja tarde demais?

Porque deixamos este polvo de morte amordaçar a nossa alma e teimamos em não reconhecer o movimento profundo de amor e benignidade que nela as dificuldades da Vida querem gravar?