10 de dezembro de 2007

PRESÉPIO- NOSSA SENHORA

Porque é Natal. Construo aos pouco o meu presépio virtual. Coloco junto da manjedoura rostos e vidas que, por vaidade, orgulho, preconceito, falta de sabedoria ou de maturidade sinto agora não ter sabido acolher.

Quando faz frio, os ossos partidos recordam-nos com a sua dor os percursos e as más experiências que deixamos para trás. Hoje a aridez do estudo pintou-me a alma com o frio que teima em não brindar o nosso inverno e doeu-me uma cicatriz.Recordei-me de um rosto perdido na minha memória.

Uma visita num qualquer serviço de medicina, numa qualquer manhã fria de um qualquer inverno pré-natalício. Recordo-me de entrar numa sala. Discutir o caso da senhora com pneumonia e rejubilarmo-nos todos com o seu excelente prognóstico.

E depois um de nós, ainda aluno, perguntar pela cama seguinte ao que o assistente respondeu com a facada "Esclerose lateral amiotrófica, aguarda indicação para ventilação" dilacerando na carne tenra da minha alma o corte profundo que na altura nem senti. Tudo num estranho e sedutor bailado de um rodar de costas brancas de uma bata hipócrita no qual se refugiava da sua (nossa) completa impotência e fragilidade.

A esclerose lateral amiotrófica é uma doença terrível. Destruindo os neurónios motores, encerra uma alma desejosa de vida numa paralizia de um corpo ainda jovem e cheio de vida, surge entre os 30 e os 50 anos. Em semanas leva-nos progressivamente os movimentos dos braços e das pernas, numa paralizia inexorável que um dia atinge o diafragma e num ultimo movimento nos consome.

É cruel perceber à distância de anos que junto àquela janela, jazia no seu silêncio paralítico contemplativo de um céu de inverno o meu grito de "Ampara-me na minha fragilidade" e todos nós, levados pelo belíssimo prognóstico da pneumonia, consumiamo-nos na glória efémera de uma cura cujo rosto já nem me recordo.

E hoje, olhando para o céu de inverno, levado na dor da minha cicatriz, revisitei o sorriso sereno desta alma que para sempre me acompanhará nos meandros da minha memória, desejando ardentemente homenagea-la na minha oração de uma entrega discreta ao dia que hoje me vai sendo confiado