“Doutor, tenho mesmo de fazer esses tratamentos todos?”-Dizia-me o meu doente num tom seguro. -“O que eu queria mesmo é que me deixassem em paz ir comer leitão com os meus filhos e netos”.
E eu, bem protegido pela minha bata, por trás da minha secretária questionando atónito aquela afirmação que me dilacerou o coração. Bem sabia que aquele homem teria semanas de vida se recusasse a quimioterapia.
Mal percebia eu que à minha dolorosa proposta de tratamento, ele ripostava com uma proposta irreverente e desafiante de vida. Na eminência da morte remetia-me para tudo aquilo, que um pouco pelo desejo infantilmente romântico de curar e salvar vidas havia, tantos anos, deixado para trás.
Esquecemo-nos tão depressa daquilo que vale mais, daquilo que nos conforta e enche o coração. Continuamos a trocar o sorriso dos nossos filhos e as suas brincadeiras por mais meia hora de televisão, o abraço cúmplice dos nossos pais por umas horas extraordinárias de trabalho e um punhado de euros, o beijo consolador da nossa namorada pelo perfeccionismo de meio ponto num exame.
E diante da eminência da morte do meu doente… diante desta mesma eminência da minha própria morte de que me vale tudo isto? E revisitei os meus pais e os meus avôs, os meus irmãos e os meus sobrinhos… E fiz-me humilde e percebi que um bom pedaço de mim se deve a eles e outro se fez neles. E percebi que aquele Homem nunca faria a quimioterapia que lhe propunha. Não tanto porque não quisesse curar-se, sobretudo, porque do alto dos seus, muito leves e vividos, oitenta e muitos anos, sabia perfeitamente o que na vida valia mais.
E hoje te pergunto, diante do imediato da tua vida… Com que olhos tens visto aqueles que Amas? Com os olhos inocentes da entrega alucinada?
Não esperes por amanhã! Só por hoje levanta-te, vai comprar os tais frangos a que te furtas há tanto tempo… Pega na tua mulher, na tua namorada, nos teus netos, nos teus filhos, nos teus sobrinhos ou eventualmente nos vizinhos que todos os dias te vão aturando e com eles alegra-te por este dom de nunca caminhares sozinho. Celebra a tua vida! Homenageia a do feliz Senhor João (ou talvez fosse António) que, na sua irreverência, provavelmente já partiu.