24 de março de 2007

REFLEXO(E)S

1. ESPELHO

Vaidoso, depois do banho, aproximei-me do espelho. Sorri com a força da minha juventude eternamente etérea. Devolveu-me o meu sorriso de forma subserviente, numa vassalagem cega ao meu orgulho. Sussurrou-me ao ouvido... "Como estás belo e forte!" E eu, relaxado, deixei-me levar... Fiz-me ao meu dia, com um sorriso no rosto, cheio de mim próprio. Numa plenitude ingénua, imprudente e pretensiosa. Depressa o dia me mostrou que viciado no meu reflexo ia cheio de nadas... de vaidades, de quereres e de poderes. Um espelho será sempre um espelho... Vazio e sem alma, limitando-se a dar reflexo daquilo que a nossa afectividade nele quiser ver. Nos dias bons vangloriando servil as nossas magnificências sublimes e ocas. Nos dias maus, deformando e espezinhando as nossas miseráveis fraquezas.Na sua superfície lança-nos numa realidade que de tão nossa em nada nos aproveita. Incapaz de nos amar, tão depressa nos arrasta nos circuitos áridos da auto comiseração diante da monstruosidade dos nossos erros como logo se predispõe a elevar-nos aos píncaros da nossa vaidade e presunção pelo espectáculo dos nossos feitos. Somos todos narcisos plantados junto ao rio. A história ensina-me que na estória o primeiro Narciso, de tão obstinado, afogou-se no rio do seu reflexo. Desta vez não me afoguei... Mas, aos poucos, distraído com o brilho do meu reflexo, tenho andado a perder o pé. É inevitável apercebermo-nos do nosso reflexo e por ele sermos questionados. Só não tenho a certeza da resposta que lhe tenho estado a dar. Creio não ser a resposta a dar-lhe naquele amanhã que seguramente virá um dia.

2. CACOS

Felizmente a vida encarrega-se de desequilibrar os espelhos dos seus pedestrais. Na sua queda dispersa-os, transformando-os em mil cacos de virtude e desafio. Tenho sido confrontado diariamente com a necessidade de parar, excentrar-me de mim mesmo, e resignar-me a ter que precisar de ajuda.

Diante da novidade da vida quando sou desafiado a agir, nem sempre sei o que fazer, quando o sei nem sempre estou seguro de que esteja certo, já para no falar de que quando estou seguro de que estou certo nem sempre consigo por os meu intentos em marcha sozinho.

E o reflexo, como num passo de magia, multiplica-se e desdobra-se num milhão de perguntas que pelo chão da alma me interrogam e desafiam.

3. PRISMA

Resisto muito a tudo isto! Não me é natural! Mas sei que nestes cacos, a Vida encarrega-se de mergulhar o meu reflexo prepotente no prisma da humildade que dissecando isola e rejuvenesce cada cor que em mim existe.

Alegra-me muito aperceber-me que, deixando o tempo correr gota a gota, a Vida se encarrega de me moldar e transformar em tudo- particularmente naquilo que, pelos meus limites, não me é permitido mudar em mim, ainda que o deseje do fundo do coração- nesta lógica passiva de raio de sol que se lança imprudente sobre a superfície de um espelho.

10 de março de 2007

AMIZADES COLORIDAS

Por sugestão de amigas e amigos, escrevo este texto...

Tentas desarmar-me com perguntas difíceis... Retribuo-te a gracinha. Mais do que definir amizade colorida pergunto-te... Conheces amizades cinzentas? O que é uma amizade cinzenta senão uma enorme hipocrisia? A paz podre! Aquele "Olá, bom dia!" mecanizado com um braço em riste num comprimento descomprometido que está para as amizades como o flirt para as relações de namoro. É casaca que não me serve! Que não quero que me sirva!!

Não há verdadeira amizade sem cor! Por isso reformulo-te a tua pergunta... Que cor dás- e já agora, desejas dar- às tuas amizades? Admito que não tenham de ser todas elas um espectáculo de cor... Mas ao menos, nem que seja para não serem cinzentas, que sejam monocromáticas: que cada uma tenha a sua tonalidade, umas azul sereno, outras verde esperança, outras laranja sorriso. Há ainda as vermelhas paixão e as brancas paz.

Agora as mais bonitas são aquelas amigas que aos poucos vão dando paleta ao cinzento da tua vida. Surgem primeiro de uma cor acolhedora. Achamos-lhe piada... Decidimos voltar a contemplá-la... E oh! Já não tem a mesma cor...

Ficamos surpreendidos! Fechamos os olhos; respiramos fundo. Só pode ter sido distracção!! Dizemos mentalmente: "concentra-te... esta é uma amizade azul!" pois foi a cor que vimos. E quando abrimos os olhos sorrimos muito... Não, já não é azul, é verde! E no abrir e fechar de olhos- sempre pautado pelo esfregar incrédulo das mãos nas pálpebras- é um arco-iris de cores que desfila diante de nós.

E aqui começamos a fugir daquilo que me perguntas. Creio que o Amor é um contínuo que aqui assume outro rosto com outras exigências. Na medida da disponibilidade dos nossos compromissos e capacidade de entrega, nascem as condições de se avançar um pouco mais no Seu caminho... Aqui surge aquele espaço de intimidade e cumplicidade que possibilita gerar com uma dessas amigas fantásticas uma paixão colorida.

Daquelas paixões tão consumptivas e exigentes que no seu clarão colorido fundem e esgotam em si próprias as cores que irradiam dos seus dois elementos numa dinâmica avassaladora de abandono e confiança mútuos. Daquelas paixões que, sem nunca renegar os cinzentos das rotinas da vida, enchem de cor e novidade as vidas dos que as vivem e daqueles que as testemunham.

Não acredito na paz podre das amizades cinzentas! Tão pouco acredito no consolo das paixões "one night stand" que arrefecem os calores hormonais! O Amor humano é, nos diversos rostos que adquire no seu contínuo, estruturado, belo e colorido!

Acredito que as amizades são tesouros! Acredito que é nossa vocação dar-lhes cor à medida que nos vão sendo confiadas. Acredito que dar-lhes cor é sobretudo saber acolhê-las e estruturá-las, sempre fieis áquilo que na nossa vida já fomos dando (e por isso já não nos pertence) e áquilo que ainda podemos dar.

Fazem muita falta amizades e paixões assim, Coloridas, comprometidas e fieis. Daquelas que dão cor e iluminam o mundo. Por isso te volto a perguntar...
Que cor dás às tuas amizades?

9 de março de 2007

VELA

Naquela sala escura de fim de noite, uma vela contrariava o vazio.

Vela que perdida no escuro se consumia numa pequena chama quase imperceptivel. Tremeluzia, hesitante, numa oscilação de caracter própria de quem se coloca numa posição de sacrifício e esforço.

Consumia-se de forma imperceptível, entregando a cada segundo o seu corpo de pavio e cera à incerteza da sua chama de futuro duvidoso. Qual seria o seu último sopro? Difícil de prever... Naquele trocar de olhares só me ficaram impressos na alma a sua assustadora certeza de que tudo acabaria um dia e o seu desejo intenso de fazer novo cada instante da sua chama.

Senti necessidade de me aproximar... Se ao menos pudesse aconchegar com a mão aquela chama! Avançei... Pé ante pé... Já bem perto dela, estendi as duas mãos e com o meu olhar encandeado envolvi aquela chama num resguardo seguro.

Brilhou com mais intensidade... Num fulgor de vida que me surpreendeu e animou. E de repente, sem que nada o fizesse esperar... Que dor intensa! A terrivel queimadura que doi sempre mais no seu curar!

Retirei as mãos! Olhei para elas... Vi então o preço de amar aquilo que não se pode controlar. Naquele vermelhão, a cicatriz da alma de quem se deixa apaixonar e se compromete com o que não pode dominar ou contrariar.

Pela janela, o primeiro raio de sol brindou então a aurora. Desperto da minha dor olhei para ela. Jazia inerte, pavio preto em couto de cera, no seu castiçal. Naquela alvorada de um novo dia, quis fazer da cicatriz que ainda hoje carrego, o epílogo perpétuo da sua irreverência.

3 de março de 2007

ESTADO DA ARTE

É saudavel rirmo-nos de nós próprios e dos nossos paradoxos. Como é estranho que uma pessoa viva sempre inconformada com o que tem e aspire profundamente aquilo que não pode ter (ainda que tantas vezes aquilo que lhe é proposto pela vida seja um milhao de vezes mais agradavel do que o mais inimaginavel dos seus sonho...). Sempre me diverti com esta dinamica interior que tanto nos caracteriza.

Nestes dias apercebo-me disto mesmo na minha relação com o estudo. É paradigmático recordar-me da dficuldade que foi para mim estudar horas a fio para um exame ainda há uns meses (ou terá sido ontem?) reclamando que me fazia falta rever os rostos sofridos dos meus doentes entre as infindáveis páginas de estudo; para agora me aperceber que entre os infindáveis rostos sofridos que vejo nas enfermarias sinto falta das páginas de estudo a que, por comodismo, tenho fugido.

Também me divertiu muito a eterna discussão sobre quem seria melhor médico... Aquele que tem muito tacto e sensibilidade ou o estudioso que se dedica afincadamente aos livros? Honestamente sempre me pareceu que radicalizar o discurso neste particular seria de uma puerilidade ignorante a roçar a imbecilidade. Parece-me muito óbvio que entre dois (aspirantes a) médicos com muito tacto e sensibilidade será melhor o que mais estuda e inversamente, entre dois estudiosos será melhor médico aquele que mais sensibilidade demonstrar.

Assim torna-se óbvio (pelo menos para mim) que na verdadeira vocaçao médica terão sempre que figurar a sensibilidade e atenção extremas ao doente e à sua fragilidade e a paixão desinstalante pelo estudo dos mistérios profundos desta intrigante entidade a que se chama Ser Humano.

Em medicina nao há espaço para meios temos! Afinal não será a medicina uma ciência feita arte? Ou talvez uma arte feita ciência? Na dualidade matreira e indissociavel de duas perguntas retóricas sorrio diante deste quebra-cabeças insoluvel.

Creio que a verdadeira dificuldade está no equilibrar dos pratos da balança dos nossos (meus) apetites. E assim, oscilante, vai o estado da (minha) arte... Tinha mesmo de comprar um livrito com uns milhares de páginas e passar umas horitas do meu sábado de folga a ler qualquer coisa para apaziguar o bichinho.